25/07/2021

Vacina no braço!

Por Carlos EmerencianoArquiteto e Advogado

Pensando no que escrever, diante de um momento de ebulição política e social, fui tragado por uma mistura de sentimentos e emoções. Chegou o meu momento de tomar a vacina contra a Covid-19. Conseguimos, eu e Renata, agendar a nossa vacinação para o mesmo dia e horário.

Dormi muito mal no dia anterior. Confesso a ansiedade. Um filme se passou na minha mente. A preocupação com os meus pais e familiares, os amigos que enfrentaram a doença, as perdas e um fato que me marcou muito. Um amigo do meu filho perdeu o pai que tinha exatamente a minha idade. Difícil não se enxergar nessa situação. Arthur resolveu fazer uma homenagem ao amigo e desenhou o pai dele do céu abençoando a sua família e falando: “sejam felizes por mim”. Procurei então me isolar para chorar. Creio que toda a angústia represada arrebentou numa torrente de lágrimas.

No dia da vacinação, acordamos cedo e esperamos nossos filhos acordarem. Nos arrumamos e partimos para o Parque da Cidade Dona Sarah Kubitscheck, em Brasília, local que agendamos para nos vacinarmos.

Veio na minha lembrança a imagem do desenho do meu filho e o pai do seu amigo abençoando a família. E deu um aperto na garganta imaginando que aquele pai da minha idade não teve a mesma oportunidade que eu. E que tantos outros também sucumbiram sem a mesma chance. Até agora, infelizmente, 550 mil brasileiros. Não são números abstratos. São vidas, pais, mães, avós, filhos, irmãos, amigos, amores. Como cantou Belchior, “na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”. Brasileiros que não tiveram a oportunidade de receber esse produto redentor que é a vacina, fruto do trabalho minucioso e abnegado de cientistas.

Essa melancolia, contudo, misturava-se a um intenso sentimento de gratidão. A Deus e a todas as pessoas envolvidas nesse processo, dos cientistas que desenvolveram as vacinas aos profissionais envolvidos na logística da distribuição e aplicação dos imunizantes. Sem me esquecer de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e técnicos que se desdobraram para fazer frente a uma pandemia tão devastadora.

Foi um momento feliz em família. De intensa alegria. Senti que os meus filhos, Arthur e Liz, de dez e seis anos, entendiam perfeitamente o que estava se passando e festejavam conosco. As crianças têm uma nítida percepção de todo esse tempo de pandemia e devem ser ouvidas. É uma cicatriz que elas levarão para o restante de suas vidas. E, por que não dizer, as cicatrizes nos diferenciam e não devem ser escondidas.

Hoje, fazemos parte dos mais de 40% da população brasileira que receberam pelo menos 1 dose (o percentual de totalmente imunizados está em 17%, após mais de seis meses de vacinação). Precisamos avançar mais e parece que o ritmo está acelerando, mas ainda aquém da nossa capacidade. Está claro que apenas o avanço da vacinação vai nos fazer superar essa pandemia. Os números de contágio e mortes finalmente começam a ceder, apesar de estarmos há 185 dias (meio ano) contabilizando uma média de mortes superior a mil por dia. Isso é inconcebível e depõe contra nós enquanto sociedade.

Resta nos cuidarmos, sermos solidários uns com os outros, cobrarmos das autoridades o que nos é de direito e pensarmos no futuro. Merecemos, no mínimo, e é da natureza do nosso povo, um governante provido de humanidade. Sinceramente, é a maior expectativa que eu tenho. Que pelo menos se comova diante do sofrimento do seu povo e não faça troça das dores alheias. Não dá para suportar, após perdermos mais de meio milhão de vidas, um presidente desdenhando e debochando diariamente. Tudo o mais saberemos construir após virarmos essa “página infeliz da nossa história”.

Vivenciamos claramente duas pandemias que se alimentam entre si.

Uma delas provocada pelo coronavírus e outra fruto do negacionismo (descobre-se agora, nas palavras do jornalista Reinaldo Azevedo, que há também “negocionismo”). É uma postura que leva a uma série de desdobramentos: resistência em seguir as medidas sanitárias, passando pela negativa em usar máscaras e findando com campanhas deliberadas contra a vacinação, sem falar na negligência criminosa na aquisição das vacinas.

Por motivações políticas rasteiras, estimulam as pessoas a escolher a marca do imunizante, criando o que ficou conhecido como o “sommelier” de vacina, atrasando ainda mais o Plano Nacional de Imunização. Contrapõem-se ao fato incontestável de que boa mesmo é vacina no braço! Em suma, negacionismo e “negocionismo” matam.

Temos que conviver, ainda por cima, com ameaças às nossas instituições e também à nossa jovem democracia. Há uma intromissão indevida de membros das Forças Armadas no processo político, evidenciada pela ameaças recente do Ministro da Defesa veiculadas pelo Estado de São Paulo. Tudo isso é inconcebível.

Como eu disse no início do artigo, vivemos um tempo de ebulição política e social. Devemos nos manter, contudo, de cabeça erguida. Tenho a impressão: se aqueles que nos ameaçam declarassem guerra ao Suriname, passaríamos a nos chamar, ao final, Suriname do Sul.

Ao ser cercado por policiais armados com seus pastores alemães ferozes, durante a ditadura militar, Ulysses Guimarães bradou: “respeitem o líder da oposição. Baioneta não é voto, cachorro não é urna”.

Despeço-me com essa lição de desassombro do saudoso Doutor Ulysses. Não tenham medo.

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Postado em 25/07/2021 às 12:00

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