Por Roberto Livianu e Daniel Lança*
Ulysses Guimarães, em célebre discurso como presidente da Assembleia Nacional Constituinte, disse que o combate à corrupção exige um compromisso triplo: não roubar, não deixar roubar e punir efetivamente quem rouba; esse seria o 1º mandamento da moral pública no país.
Há tempos, torna-se escandalosa a falta com o compromisso triplo pelo Governo Federal, de modo que não soam como novidade as graves acusações do caso Covaxin, na mesma semana em que Bolsonaro repete a apoiadores que não há qualquer escândalo de corrupção em 2 anos e meio de seu governo. Relembramos aqui não apenas diversos casos de corrupção relatados na administração Bolsonaro, como também investidas de enfraquecimento das instituições e da agenda anticorrupção que sustentam o mandamento da moral pública de Ulysses.
O primeiro pilar –não roubar– parece abalado no governo Bolsonaro. O recente caso da compra das vacinas Covaxin envolve graves suspeitas de superfaturamento, utilização de intermediários suspeitos de fraudes, pressão do líder do governo na Câmara para acelerar contratação ilegal, além do que parece ser, comprovadamente, a existência de crime de prevaricação por parte do presidente da República.
Além do caso Covaxin, o governo acumula outras acusações de corrupção por fatos cometidos antes e durante o atual mandato –apenas para falar do alto escalão e do ciclo íntimo do presidente. Como o esquema na liberação de madeira ilegal do ex-ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles; a acusação de recebimento de verbas suspeitas por Fábio Wajngarten, ex-chefe da Secretaria de Comunicação Social, que usava o poder no qual se via investido para pagar às suas próprias empresas; o acordo de confissão de prática de caixa 2, em 2020, pelo ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni; o indiciamento da PF (Polícia Federal) contra Marcelo Álvaro Antônio, ex-ministro do Turismo, sobre o “laranjal mineiro” –candidaturas fraudulentas em Minas Gerais; as suspeitas de contratos fraudulentos autorizados por Osmar Terra, ex-ministro da Cidadania; ou as supostas irregularidades apontadas pela PF na Operação Circuito Fechado, cujas investigações apontam contratos suspeitos no Dnit, então chefiado pelo Ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas.
Além dos ministros sob suspeita, o círculo íntimo de Bolsonaro também sofre investigações de corrupção, sobretudo quanto às suspeitas de rachadinha, que envolvem familiares e amigos próximos do presidente. Isso sem contar as diversas denúncias de corrupção envolvendo o líder do Governo na Câmara, o deputado Ricardo Barros, e o senador Chico Rodrigues, ex-vice-líder no Senado, flagrado com R$33.000 na cueca e no interior das nádegas.
Os outros 2 pilares –não deixar roubar e punir efetivamente quem rouba– foram sistematicamente enfraquecidos ao longo do governo Bolsonaro. O caso Covaxin ilustra bem: ao ser informado de indícios de corrupção no Ministério da Saúde, o presidente da República não só não tomou qualquer providência para investigar o caso como mandou vingativamente investigar o mensageiro.
Em outro exemplo esdrúxulo, este governo afastou por duas vezes os delegados da Polícia Federal responsáveis pela investigação de corrupção contra o ex-ministro Ricardo Salles, dando um recado claro: retaliará qualquer um que investigue casos de corrupção.
Depois da aprovação do famigerado PL da Impunidade há 10 dias que estraçalha a Lei de Improbidade Administrativa, principal lei anticorrupção em vigor no Brasil, com apoio total do grupo aliado ao governo, o presidente declarou publicamente que o projeto aprovado “vai ajudar”.
Há inúmeros outros episódios que demonstram o enfraquecimento das agências anticorrupção, como as frequentes interferências do presidente da República em órgãos como a própria Polícia Federal e a Unidade de Inteligência Financeira, antigo Coaf. O próprio Ministério Público Federal também foi alvo: sua autonomia foi desconsiderada quando nomeou-se um procurador-geral da República cujo nome não constava da lista tríplice da ANPR e que sequer havia participado dos debates promovidos pela entidade. Além de tudo, os ministros acusados de corrupção não foram exonerados.
Os jornalistas, que cumprem papel vital de garantir o direito de acesso à informação, são sistematicamente hostilizados, ofendidos e humilhados pelo presidente, como o caso de Victoria Abel, da CBN, na semana passada. Ou Patrícia Campos Mello, que já obteve até indenização em juízo, cenário que levou o Brasil a ser rebaixado do nível laranja para o vermelho da Repórteres sem Fronteiras no ranking anual de liberdade de expressão, indicando um ambiente de trabalho difícil para os profissionais. Além disso, infelizmente, a opacidade tem sido a marca desta gestão, que obrigou o Brasil a formar inédito consórcio de veículos de comunicação para garantir informação sobre os números da pandemia em virtude do apagão federal.
Por tudo isso, os relatórios de agências internacionais veem com preocupação a situação do Brasil no combate à corrupção. A OCDE recentemente criou um grupo permanente de monitoramento depois de constatar sinais de retrocesso no combate à corrupção no país.
O Brasil também vem regredindo na pontuação de pesquisas internacionais como o Índice de Percepção da Corrupção, da Transparência Internacional, e o Índice de Capacidade de Combate à Corrupção, da Americas Society/Council of the Americas (AS/COA) e Control Risks. O próprio Bolsonaro foi “premiado” como a pessoa mais corrupta do ano de 2020 pelo Organized Crime and Corruption Reporting Project, um dos maiores consórcios de jornalistas investigativos do mundo.
Assim, o governo Bolsonaro, eleito na esteira do discurso anticorrupção, deixa evidente que sua postura concreta é diametralmente oposta. Com o recente caso deflagrado na última semana e o contínuo desleixo em relação ao aperfeiçoamento das instituições democráticas de controle, não resta dúvida a respeito do total descaso em relação ao tríplice compromisso anticorrupção. Tudo não passa de discurso vazio e retórico.
Por mais doloroso que seja, a revelação da grave prevaricação presidencial em relação ao líder do Governo na Câmara e todo este grave histórico que inclui o enfraquecimento e captura das instituições democráticas, exatamente dentro do modelo de Ziblatt e Levitsky, professores de Harvard, descrito em sua obra “Como as Democracias Morrem?”. Isso não pode ter um desfecho que não o impeachment presidencial, em respeito à prevalência do interesse público e por coerência aos princípios republicanos em relação aos quais não podemos transigir.
* Daniel Lança advogado, mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa e sócio da SG Compliance, bem como professor convidado da Fundação Dom Cabral (FDC).
Postado em 4/07/2021 às 19:00
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