02/05/2021

Carta aberta a Paulo Guedes (da filha do porteiro)

Por Nathalí Macedo - Escritora, roteirista, militante feminista

Posto Ipiranga,

Costumo me arrepender sempre que clico em manchetes com seu nome. Já tive que ler que funcionários públicos são parasitas, que “todo mundo agora quer viver até 100 anos”, que “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer” (alô, agronegócio, já almoçou?) – a única certeza do brasileiro, neste momento, é que o senhor e o seu presidente jamais perderão a oportunidade de ficarem calados.

Aliás, de todos os absurdos que o senhor – surpreendentemente ou não, um dos nomes mais importantes do desgoverno Bolsonaro – já bostejou, o mais recente é também o que mais fala sobre o Brasil, o que melhor desenha o ódio de classes que deu base ao bolsonarismo com o qual o senhor contribui e do qual se beneficia. “FIES bancou universidade até pro filho do porteiro que zerou o vestibular”.

Uma primeira consideração a ser feita neste ponto é que o FIES não “banca” universidade pra ninguém. É um sistema de financiamento. Com juros e parcelas a perder de vista. Após a formatura, o estudante leva um diploma e uma dívida imensa com o Estado.

Em um país decente, com educação pública de qualidade e políticas públicas sérias para a juventude, o FIES seria obsoleto, senhor Ministro.

Já no Brasil das desigualdades, é, pra muita gente, o único caminho para a universidade. No Brasil da educação básica defasada e do ensino médio boicotado – em que o filho do porteiro tem que se esforçar dez vezes mais do que o filho do ministro pra entrar na universidade pública – é necessário que estudantes se endividem se quiserem um diploma (que de forma alguma, como o senhor deve saber, garante um emprego ou uma sobrevivência digna no Brasil de Bolsonaro).

Eu era a filha do porteiro. Do moto-taxista (no nordeste não tem motoboy, tem moto-taxista), para ser mais específica. Lá em 2011, quando passei no vestibular com bolsa 50% pelo ProUni, eu trabalhava pra pagar a metade do meu cursinho pré-vestibular. A outra metade o meu pai pagava, com o dinheiro que ganhava nas corridas – de dois em dois reais.

Quando fui aprovada, não tínhamos dinheiro pra pagar a outra metade da mensalidade, que não era coberta pela bolsa. Se não existisse o FIES, senhor Ministro, eu não estaria no doutorado aos 26 anos.

Na época, fizemos o financiamento para o primeiro semestre, e eu estudei ainda mais pra conseguir uma bolsa integral pelo ProUni no semestre seguinte. Graças a ele, a partir do segundo período eu já não precisava me endividar pra estudar. Tive meu curso completamente patrocinado pelo governo responsável por colocar os filhos do porteiro na universidade, um governo que investe em seus jovens. Depois disso, pude enfim ter condições de entrar em uma universidade pública para o mestrado.

É isso que te preocupa – não só a você, mas a toda a classe média que odeia pobre: nós, os pobres, estamos na universidade, muitas vezes fazendo pesquisas contra seu governo. O problema de vocês com o PT nunca foi a corrupção. A gente sabe: sempre foi ódio de classes.

Nós já sabíamos quando vocês comiam picanha em frente à FIESP. Quando lançou o premiado “Que Horas Ela Volta?”, Ana Muylaert também sabia. E adivinha? Não foi Jéssica que zerou o vestibular. Foi Fabinho, o filho dos ricaços. Poderia facilmente ser filho do ministro: esses meninos brancos que tiveram tudo e nunca precisaram desenvolver as próprias habilidades – e, em razão disso, ficaram burros. Acontece.

Também não me surpreende, do mesmo modo, que o senhor não conheça o cinema nacional, ou que ele nada lhe diga, e é por isso que o senhor não vai pegar a referência, mas eu lanço mesmo assim: problema dos Fabinhos, a gente sempre soube, são as Jéssicas – que entram na universidade apesar dos pesares, sem estrutura pra estudar, enfrentando a pobreza todo dia, e depois pegam o mesmo avião que eles para a Disney (na verdade, os que estudam bastante escolhem destinos menos fúteis, mas ainda cruzam com os ricos no aeroporto).

Essa realidade, aliás, parece parte de um passado distante – bons tempos em que tínhamos um presidente. Hoje, graças ao senhor e seu amo, ninguém mais vai à Disney. Ou a lugar nenhum: nenhum país abre fronteiras pra brasileiro sob o desgoverno Bolsonaro.

Parabéns aos envolvidos.

O senhor não se contentou em escrever seu nome na história como inimigo do Brasil e um dos mentores do período mais nefasto do século: faz questão de se consagrar também como aquele que compete com o presidente e seus filhos pelo Oscar na categoria “falar bosta”.

Fique à vontade para compor seu mural de absurdos, mas, na próxima vez que o senhor pensar em dizer que o filho do pobre zera o vestibular, veja o filme de Ana Muylaert ou simplesmente consulte o currículo lattes dos seus companheiros de governo, com informações falsas, plágios e pesquisas irrelevantes.

Por ora, não podemos fazer muita coisa contra o governo genocida que o senhor integra. Mas ainda podemos dizer – ou escrever – em alto e bom som: burrice não é coisa de pobre. É a especialidade principal do bolsonarismo.

Revoltosamente,

Nathalí.


Postado em 02/04/2021 às 12:00 - Artigo publicado originalmente no Diário do Centro do Mundo (30/04)

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